segunda-feira, 3 de agosto de 2009

a poesia (dentro de mim)

«Pensava que uma das poucas qualidades que tinha era a ausência de inveja. Não é verdade. Invejo os poetas. O que eu queria mesmo, o que mais queria neste mundo, o que mais desejava mas não tenho talento, era ser poeta.» (António Lobo Antunes)
Não sei quantos anos tinha, não me recordo se estava eu sentada a ler um livro ou na carteira da escola, se numa viagem de carro, se numa das conversas intermináveis à volta da mesa da cozinha. A única coisa que me lembro foi de, instintivamente, se ter desenhado um sorriso nos meus lábios, um leve sorriso, para que ninguém descobrisse o segredo que nascia em mim, no momento em que me apercebia da imagem mais poética que alguma vez me deram a conhecer. Resumida estava, naquela imagem, na mesma fracção de segundo, a fragilidade e a brutalidade dos seres, a magia da natureza, a força da vontade, tudo o que, no mundo, poderia existir de mais antagónico e de mais próximo.
Ao longo da vida, a natureza já me surpreendeu e encantou várias vezes, a Natureza e as emoções Naturais dos homens, mas nunca conseguiram alcançar a grandeza da poesia de uma simples imagem que veio até mim e se alojou, num cantinho do coração, para nunca mais ser esquecida, uma imagem que me arrepia.
Não, não é o pôr-do-sol, por muito de mágico que ele tenha. A bola de fogo a cair, vertiginosamente, sobre o mar, sobre as montanhas, sobre mim. O momento em que tudo fica mais calmo, mais pacífico, menos claro. O momento em que a maior das nostalgias se encontra com o meu corpo nu e, abraçando-me, prende-me o mínimo movimento e a tentativa de fala. A bola de fogo imensa, que faz com que a noite caia em mim, que me faz querer viajar para um sítio desconhecido, para o sítio onde o tudo é nada e o nada é tudo, um mundo sem ideias feitas. Cada pôr-do-sol é poético, não importa onde, nem quando; mas nunca tão intenso como aquela imagem.
Poderia ser, mas não é, o enrolar do mar na areia, o marulhar das ondas, que vêm e vão, sem dar explicações, nem justificações, a ninguém, que viajam tanto quanto a sua vida de ir e voltar lhes permite, tanto quanto a sua vida de ir e não chegar (ou será de chegar e não ir?) lhes permite. Essas ondas e os segredos que me desvendam à beira-mar, ou as suas notícias que me chegam ao sabor do vento, nas escarpas mais altas, onde os seus corpos leves namoram com as rochas mais sólidas. É um namoro mágico este, que me traz notícias do fundo, que me inspira, que me leva para um estado de espírito indescritível. O marulhar das ondas, na fina areia em que os meus pés pisam, os seus gestos delicados a acariciarem os meus dedos, os meus calcanhares e os meus tornozelos, a mimarem o meu eu; vezes há em que querem mais de mim e que me beijam os joelhos, a barriga, a face, que me salpicam de paz, de amor, de um ruído, de um burburinho intenso que me anima os sentidos.
Talvez pudesse ser o limite entre o mar e o céu, ou entre a terra e o céu (ou mesmo a falta dele). O limite que separa aquilo que podemos alcançar, do inatingível; a fronteira entre o que podemos e o que queremos (ou a inexistência dela). É o que de mágico vejo neste encontro entre o céu e o que existe na Terra: à semelhança do que acontece nos nossos sonhos e desejos, há uma fronteira entre os que estão à nossa mão e os que nos parecem inalcançáveis, mas que moram sempre em nós. Esses que tentamos, a todo o custo, realizar. A cada segundo, procurar a fronteira, pisá-la e, depois, ultrapassá-la, a fronteira dos sonhos, como o limite mágico e inexistente entre o que há no céu e o que mora na Terra. Essa magia da Natureza, a linha ténue que separa dois mundos diferentes, espelha a Natureza Humana. Apesar de louca a intensidade desta fronteira e do seu simbolismo, apesar de poética a sua (in)existência, não foi esta a imagem que me chegou aos sentidos de forma abrupta e mudou a minha forma de ver a vida.
Há tanta coisa no Mundo que poderia ser a imagem concreta da minha poesia, não fosse o mundo, todo ele, um poema: o zumbir do vento nos meus ouvidos, que me despenteia os cabelos, o sorriso mais verdadeiro que encontre por aí, os olhos mais sentimentais, que escondem um coração cheio de gargalhadas, a cor do mar, o cheiro do verde e a paz que se esconde num qualquer bolso, os ramos das árvores e a sua sombra.
Porém, a imagem mais intensa e poética que algum dia conheci foi a de um elefante a carregar, inocentemente, o frágil pólen das flores nas suas majestosas patas, para locais recônditos e, assim, aumentar a diversidade biológica existente. Um elefante, na sua grandeza simbólica, levar o mais frágil pólen, escondido nas suas patas, a viajar. Encontrarei eu alguma vez um poema com esta energia? Um elefante, com a sua tromba feliz, é ele, um dos elementos que contribui para a existência de uma diversidade biológica imensa, neste planeta. No seu despojamento de sentimentos negativos, no seu andar sublime, tal qual a imponência de um importante rei, carrega, nas suas patas maternais, o pólen, sem saber que serve de meio de transporte a um tão delicado futuro ser; o leve peso de trazer, sob a massa gigante e preguiçosa do seu corpo, aquilo que, um dia mais tarde, será uma árvore centenária. E o elefante, grande e pesado, foi o primeiro paimãe da árvore da sabedoria.
Fosse eu poeta e descreveria, em quantos versos houvesse no mundo por descobrir, esta imagem, o espelho do espírito humano: brutos seres que carregam frágeis sonhos.